domingo, 2 de abril de 2017

O DILÚVIO EM FONTES EXTRA-BÍBLICAS


O DILÚVIO EM FONTES EXTRA-BÍBLICAS:
Dois relatos extra-bíblicos da Mesopotâmia, muito bem preservados, dão conta de um antigo dilúvio: a Epopéia de Gilgamesh e o Épico de Atrahasis. Diversas traduções desses épicos e de outros textos do Oriente Médio podem ser encontradas em livros como: (1) J. B. Pritchard, editor, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament [Textos Antigos do Oriente Médio Relacionados ao Antigo Testamento] (3ª edição revisada. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1969); (2) W. Beyerlin, editor, Near Eastern Texts Relating to the Old Testament [Textos do Oriente Médio Relacionados ao Antigo Testamento] (Filadélfia: Westminster, 1978); (3) John Walton, Ancient Israelite Literature in its Cultural Context: A Survey of Parallels between Biblical and Ancient Near Eastern Texts [Literatura Israelita Antiga em seu Contexto Cultural: Uma Análise Comparativa entre a Bíblia e Textos Antigos do Oriente Médio] (Grand Rapids: Zondervan, 1990); (4) Victor H. Matthews e D. C. Benjamin, Old Testament Parallels: Laws and Stories from the Ancient Near East [Comparações Veterotestamentárias: As Leis e as Histórias do Antigo Oriente Médio] (2ª edição. Nova York: Paulist Press, 1997); (5) W. W. Hallo e K. Lawson Younger, editores, The Context of Scripture: Monumental inscriptions fom the Biblical World [O Contexto das Escrituras: Escritos Relevantes do Mundo Bíblico] (3 volumes; Leiden: Brill, 1977-2002); (6) B. T. Arnold e B. E. Beyer, Readings from the Ancient Near East: Primary Sources for Old Testament Study [Estudos sobre o Antigo Oriente Médio: Textos Originais para Análises do Antigo Testamento] (Grand Rapids: Baker, 2001).
• A EPOPÉIA DE GILGAMESH:
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Assim denominado por causa de Gilgamesh, rei de Uruk (Ereque, em Gênesis 10:10) em torno de 2600 a.C., esse texto data de aproximadamente 1600 a.C., de acordo com Thorkild Jacobsen. Gilgamesh era um rei tirano e brutal, causando grande indignação entre seus súditos. A fim de derrubá-lo, o povo pediu que um de seus deuses lhe criasse um inimigo. Esse inimigo se chamava Enkidu. Ele só foi “humanizado”, ou “civilizado”, após uma semana de orgia com uma prostituta. Em seguida ocorreu um combate entre Enkidu e Gilgamesh, mas sem vitória para nenhum dos lados. Os opositores se tornaram colegas e lutaram contra toda sorte de monstros malignos e celestiais. Ao longo dessas aventuras, o mortal Gilgamesh recebeu uma proposta de casamento de ninguém menos que a estonteante deusa Ishtar, mas ele a recusou, principalmente por causa de seu terrível histórico de casos extra-conjugais.
Por causa da afronta a Ishtar, Enkidu morreu, fazendo com que Gilgamesh passasse a ter um medo patológico de perder sua própria vida. Ele ainda assim conseguiu lembrar que um de seus ancestrais, Utnapistim, vencera a morte e obtivera a imortalidade. Se ele ao menos pudesse encontrar Utnapistim, poderia aprender o segredo e salvar sua própria vida. Seguiu-se uma atribulada jornada pelas diversas partes do submundo. Por fim, ele encontrou Utnapistim. Eis a história que Utnapistim conta a Gilgamesh.
Certa feita, Ea contou a Utnapistim que Enlil se preparava para destruir a humanidade com um dilúvio. Disse-lhe que, se fosse sábio, deveria construir um barco e reunir sua família, seu gado, alguns bens e marinheiros profissionais. A tempestade começou e perdurou por sete dias e sete noites, fazendo com que o barco de Utnapistim acabasse encalhado no topo de uma montanha. Após as águas baixarem, ele saiu do barco e adorou seus deuses. Posteriormente, Enlil ficou sabendo que dois mortais escaparam da catástrofe. A fim de completar seu trabalho, livrando a terra da humanidade, ele conferiu a imortalidade a Utnapistim e sua esposa.
Como a experiência de Utnapistim foi algo absolutamente singular, Gilgamesh acabou se sentindo ainda mais desapontado. Depois de outras frustrações, voltou para sua casa, em Uruk, resignado com o seu destino. Sendo-lhe negada a imortalidade, restava-lhe sobreviver na mente das pessoas através da esplêndida Uruk, que ele havia construído. A imortalidade, portanto, é a obra de suas mãos.
• O ÉPICO DE ATRAHASIS:
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Após a Criação, os homens de multiplicaram tão rapidamente e fizeram tanto barulho, que Enlil acabou com insônia. Ele, então, planejou reduzir a população com uma praga, quando, repentinamente, Atrahasis nos é apresentado. Com a ajuda de seu deus, Enki, Atrahasis conseguiu impedir a praga.
O problema foi resolvido, mas após 200 anos, a terra estava “coberta de homens”. Enlil então planejou uma seca, mas Atrahasis voltou a interceder  e aplacou a ira do deus ofendido, terminando com a seca. O ciclo voltou a se repetir uma terceira vez e a punição foi uma reedição da seca.
Exasperado por mais um fracasso, Enlil ordenou um dilúvio. O que se seguiu é bastante parecido com a Epopéia de Gilgamesh, com a exceção de que o herói é Atrahasis, não Gilgamesh. Seguindo o conselho de Enki, Atrahasis construiu um navio resistente à tempestade, que estava destinada a durar sete dias e sete noites. A tempestade foi de tal forma devastadora e a aniquilação da humanidade foi tão completa, que até mesmo os deuses ficaram em dúvida quanto à sagacidade do plano de Enlil.
Após desembarcar, Atrahasis, assim como Utnapistim, ofereceu um sacrifício aos deuses em agradecimento por sua sobrevivência, e não era sem tempo, pois os deuses tinham ficado sem se alimentar durante o dilúvio. Sua fonte de comida, os sacrifícios dos mortais, havia desaparecido.
Foram tomadas algumas providências para limitar o crescimento da população mundial. Tratava-se de um controle de natalidade: a criação de algumas mulheres permanentemente estéreis; a criação de um demônio, cuja função era “arrebatar o bebê do colo daquela que lhe deu à luz”; e a criação de diversas categorias de sacerdotisas a quem era proibido procriar.
• UMA ANÁLISE DOS ÉPICOS:
Uma comparação entre os épicos de Gilgamesh e Atrahasis com Gênesis 6-9, no que diz respeito a catástrofe do dilúvio, mostra claras e pormenorizadas semelhanças. Será que isso significa, contudo, que os hebreus pegaram o relato mesopotâmico emprestado e apenas trocaram os nomes? Não será possível que tais similaridades, entre a Bíblia e as culturas vizinhas, se devam ao fato de ambas se basearem em eventos históricos? Tanto a literatura da Mesopotâmia como a Bíblia mencionam o dilúvio simplesmente porque houve um dilúvio.
Sendo esse o caso, é ainda mais interessante compará-las, a fim de verificar como tradições diferentes trataram do mesmo assunto, do mesmo acontecimento. Tal comparação revela diferenças essenciais entre mentalidades e visões de mundo. Uma das vantagens do crente que lê mitologia está na compreensão sobre o que pensavam os povos antigos, sobre como respondiam às questões fundamentais da vida sem a luz da revelação.
A Epopéia de Gilgamesh, por exemplo, não diz praticamente nada sobre o motivo do dilúvio. O único trecho pertinente é: “A cidade era antiga, [assim como] os deuses que a habitavam. Quando seus corações levaram os grandes deuses a trazer o dilúvio”. Após o cataclismo, Ea censurou Enlil: “Como tu, ó mais sábio dos deuses, ó herói, pudeste, sem refletir, provocar a inundação? Que ao pecador seja imputado seu pecado, que ao transgressor seja imputada sua transgressão!” (11.179-181). No Épico de Atrahasis, foi o barulho das multidões que despertou a ira e a vingança de Enlil. Os maiores especialistas em escrita cuneiforme estão convencidos de que a palavra utilizada para barulho significa exatamente isso, não turbulência moral.
Enlil, portanto, agiu movido pela raiva, pelo egoísmo e pelo capricho. Seu juízo foi totalmente punitivo; para as massas, esse tipo de juízo não possui nenhum efeito terapêutico. E será que um dos deuses pode trazer uma catástrofe sobre a humanidade em virtude dos pecados dos homens? Afinal de contas, os próprios deuses estão longe de ser puros.
Além disso, de igual modo é complicado entender o porquê de um mortal ser salvo. Na Epopéia de Gilgamesh, Ea avisou Utnapistim dos planos de Enlil; no outro Épico, Enki informou Atrahasis. Mais uma vez, o mais perto que alguma dessas obras chega de salvar aquele que é justo encontra-se no relato sumério do dilúvio. Nesse relato, o único a se salvar do afogamento foi Ziusudra, um rei honrado e humilde, embora o relato não chegue a enfatizar um vínculo entre seu caráter e seu livramento.
Além do mais, as dimensões da nave construída pelos heróis é por demais estranha: “iguais deverão ser seu cumprimento e largura” – ou seja, um cubo, como é posteriormente confirmado ao longo do Épico. Além de animais e sua família, o herói levou consigo marinheiros profissionais. Foi a habilidade e o engenho humano que mantiveram esse navio flutuando. Utnapistim também levou consigo grandes quantidades de ouro e prata, um pequeno pé-de-meia para recomeçar, caso saísse vivo daquele pesadelo.
Por fim, ambas as histórias são desprovidas de qualquer função didática. O que elas tentam passar e qual é o significado de sua temática? Será que, de alguma forma complexa, tais histórias dizem respeito ao leitor? A Epopéia de Gilgamesh trata mais de Gilgamesh que de Utnapistim e se concentra mais na trama que antecede o dilúvio que no livramento da catástrofe. Possivelmente o seguinte princípio poderia ser extraído da história: satisfaça-se com sua situação e com aquilo que tem, sem jamais tentar ultrapassar seus limites (Gênesis 3?). Pouco vale, mas o diálogo do texto confirma isso.
O fim do Épico de Atrahasis é ainda mais deprimente: após fracassar por três vezes, Enlil deu um ultimato: cerrassem o útero, fizessem com que toda a progênie fosse natimorta, impusessem o celibato. Obviamente, não se trata de uma orientação destinada a produzir respeito pelos deuses. Quiçá medo e suspeita, mas não confiança e amor.
• UMA COMPARAÇÃO ENTRE OS ÉPICOS E O RELATO DE GÊNESIS:
Ao examinarmos o relato de Gênesis, investigando os quatro pontos de contraste acima mencionados, podemos demonstrar um pouco de seu caráter único.
Gênesis afirma que o dilúvio foi deflagrado pelo pecado da humanidade. Grande parte disso é indicado nas narrativas dos capítulos 3-5 e nos primeiros quatro versículos do capítulo 6. A isso pode-se acrescentar: “a maldade do homem se multiplicava sobre a terra […] toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (6:5); “A terra, porém, estava corrompida” […] “encheu-se a terra de violência” (6:11); “porque toda carne havia corrompido o seu caminho sobre a terra” (6:12).
Embora não fique claro na tradução, o termo para “corrompido(a)” dos versículos 11 e 12, no texto em hebraico, é formado pela mesma raiz de “os destruirei” no versículo 13. Será essa uma maneira de Deus destruir? Em vez interromper e impedir, Ele permite que o mal iniciado pela humanidade siga em direção a sua inegável conclusão. Veja, por exemplo: “porque a medida da injustiça dos amorreus não está ainda cheia” (Gn 15:16). Semelhantemente, o Apóstolo Paulo, ao falar sobre a manifestação da ira de Deus contra o pecado, usa a expressão “Deus os abandonou” (Rm 2:24,26,28), a qual é sem dúvida mais passiva que ativa, mais branda que colérica.
Contudo, para não concluirmos que Deus não passa de um espectador impassível diante de todo esse lamaçal, devemos notar que o próprio Deus sofre uma intensa dor emocional: Deus “se arrependeu” (Gn 6:6). Interessante observar que, na expressão “pesou-lhe o coração”, o termo hebraico procede da mesma raiz da palavra traduzida por “dor” em 3:16-17. Nesses versículos, é respectivamente anunciada a dor que Eva enfrentaria no parto e a dor que o homem sofreria ao extrair o alimento do solo. A dor da humanidade se tornara a dor de Deus! É claro que a dor do homem da mulher são físicas e ocorrem em consequência de seu própria mau comportamento. A dor de Deus é a dor da decepção causada pelo mau comportamento da humanidade. É revelador que, em Gênesis 6, a primeira reação de Deus diante da iniquidade generalizada em sua criação não seja a fúria ou a indignação, mas o desapontamento.
Noé não é poupado por causa de um capricho ou favoritismo. Pelo contrário, ele “era varão justo e reto em suas gerações; Noé andava com Deus” (6:9; cf. 7:1). O caráter, de um jeito ou de outro, determina o destino.
Para ser mais exato, é ordenado a Noé a construção de uma arca, não um barco (6:14), mais um baú que um navio. Suas dimensões, longe de serem absurdas, são bastantes adequadas a uma embarcação para águas oceânicas. Nenhum marinheiro acompanhou Noé, nem há qualquer referência a equipamentos de navegação (a não ser que consideremos a janela no telhado, por onde se podiam contar as estrelas, ou podiam passar os pássaros como pombos-correios navais). O livramento deveu-se unicamente a Deus. Além disso, aqueles que se salvaram não levaram nenhum bem material consigo. Noé, assim como Acã, não tinha direito algum de fazer isso.
Longe de ser uma história palpitante, mas irrelevante, contada ao redor das fogueiras nas gerações posteriores, o relato do dilúvio teve um profundo efeito nas gerações ulteriores. Antes de mais nada, há um cancelamento da maldição de Deus sobre a terra (8:21; cf. 3:17), evidenciado pela história da vinha de Noé (9:20-29). Ao associar 8:21 com 6:5, Gerhard von Rad observa: “o versículo 21 é uma das mais notáveis declarações teológicas do Antigo Testamento: demonstra como o jeovista pode se expressar de modo decisivo e intenso nos pontos mais relevantes. A mesma condição que no prólogo fundamenta o juízo de Deus, no epílogo, revela sua graça e providência. Podemos contemplar […] o contraste entre a fúria punitiva de Deus e sua graça que sustenta […] como se Deus ajustasse à iniquidade do homem”[1].
A promessa é, então, acompanhada de uma aliança com Noé no capítulo 9. O que Deus um dia disse a Adão (1:28), ele diz agora a Noé (9:1). Desse modo, temos um segundo começo, uma segunda chance para a humanidade, ainda que com ressalvas (9:2-6).
Tal aliança não é exclusiva, mas precedente. Noé é o primeiro de uma série de pessoas com quem Deus firmou essa aliança. O dilúvio, contudo, jamais voltaria a ser repetido (9:11), A manutenção dessa aliança é responsabilidade de Deus. Não esqueça que o arco da aliança no céu é para uso dele (9:12-17). O Deus Todo-Poderoso escreve um bilhete para si mesmo! Eis o alcance dessa história na vida daqueles que lêem.
Fonte: VICTOR P. HAMILTON, Manual do Pentateuco, p. 69-75.
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• OUTROS POVOS QUE RELATAM UMA INUNDAÇÃO:
– Para os chewongs da Malásia, o criador, Tohan, costuma submergir em água, de tempos em tempos, toda a humanidade, exceto alguns que avisa previamente;
– Para os hindus, o Dilúvio vem precedido de Vishnu transformando-se em peixe para alertar Manu;
– Viracocha, dos mitos peruanos, insatisfeito com os gigantes, destruiu-os com um dilúvio (em parentesco com os 4 versículos iniciais de Gênesis 6);
– Para os gregos, o dilúvio em Atlântida veio como uma punição divina por sua arrogância, mas Deucalião, advertido por Prometeu, salvou-se numa arca, encalhando no monte Parnaso e terminando com um sacrifício a Zeus – outro dilúvio aconteceu quando Poseidon levantou as águas do Mar Egeu e inundou a planície de Elêusis e Atenas por um longo período;
– O Dilúvio de Sangue contado pelos egípcios também se baseava no julgamento pela iniquidade, da mesma forma como foi com o dilúvio narrado pelos mitos chineses, que Yu decidiu acalmar;

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